terça-feira, 3 de novembro de 2009

Análise_Livro

Toda vida daria um livro

Estamos cercados de narrativas e histórias inventadas por todos os lados. E isso é muito bom. Entenda por que uma dose diária de ficção é essencial em nossa vida

A história foi a seguinte: eu estava trocando dois dedos de prosa com a escritora Ana Miranda sobre a importância da ficção em nosso cotidiano, tema desta matéria. Ela então me olha muito estranha e diz: Como assim? Em seguida, parecendo imediatamente refeita do susto, faz uma declaração exultante, apaixonada: O cotidiano não passa de uma ficção. Deus inventou o dia e nós, o dia-a-dia.

Não é preciso ser escritor para desconfiar que estamos cercados por ficção desde o raiar do dia até o pôr-do-sol nas tiras de quadrinhos do jornal, nos games, na novela das 8, nas peças de teatro, nas histórias, causos e anedotas contados por todos em conversas corriqueiras e (evidentemente) nos livros. Essa dieta de ficção começa bem cedo em nossas vidas: ainda crianças pequenas, ouvimos as fábulas contadas pelos nossos pais, imaginamos histórias sobre cigarras e formigas, contos arrepiantes sobre monstros marinhos, somos platéia para alegres enredos sobre a turma de uma menina dentuça e muito brava, as aventuras de um certo camundongo...

E isso tem prosseguimento por toda a vida. Depois, aprendemos a ler e vamos procurar livros de aventuras, romances, vamos ao teatro e ao cinema, jogamos Mario Bros, participamos de RPGs enfim, perpetuamos nossa busca por histórias inventadas. Por que acontece isso? Melhor dizendo: por que é universal e atemporal esse desejo por ficção? Por que é essencial essa dieta de sonhos? Quais são os ganhos para quem consegue ter uma vida equilibrada entre a realidade (às vezes, a dura realidade, aquela que só costumava aparecer em alguns livros lidos na adolescência) e a imaginação? Muitas perguntas, não resta dúvida. Mas segure-se na poltrona, vire a página, respire fundo e acompanhe os próximos capítulos dessa história. Porque você também é protagonista dela.

Era uma vez...

A magia da ficção está ligada aos contos de fadas. O famoso Era uma vez é a tecla play do imaginário das crianças, capaz de dar movimento, luz e som aos sonhos vida afora e expulsar o medo do escuro. A disponibilidade para a ficção nos anos de maturidade depende do que é capturado nessa primeira fase da vida. Assim como nosso equilíbrio entre real e irreal, entre o prosaico e o imaginado. A infância é a época em que essas fantasias precisam ser nutridas, escreve o psicólogo austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990) em A Psicanálise dos Contos de Fadas. Isso porque, sendo um estágio que vai definir um bocado da nossa personalidade futura, a infância é o terreno mais fértil para plantar os sonhos e despertar os pequenos para a necessidade da invenção para enfrentar a realidade.

Os contos de fadas representam um corrimão para as crianças firmarem os próprios passos, brincarem com as idéias e tentarem entender seu universo. Oferecer para a criança o pensamento racional como forma de organizar seus sentimentos e compreensão do mundo só servirá para confundi-la e limitá-la, afirma Bettelheim, que comprou a briga na defesa dos contos de fadas como o pontapé inicial de uma vida mental mais saudável. Contrariou os pais que identificavam nas histórias fantásticas uma fuga da realidade. Não lhes ocorre que a verdade na vida de uma criança possa ser diferente dos adultos. Não percebem que os contos de fadas não tentam descrever o mundo externo e a realidade. Nem reconhecem que uma criança sadia nunca acredita que esses contos descrevam o mundo realisticamente, diz. A verdade dos contos de fadas é a verdade de nossa imaginação.

Quando um pai ou uma mãe conta uma história ao filho, está se aproximando ainda mais da criança. O potencial que teremos de abstrair vem dos encontros com nossos responsáveis. Da qualidade desse encontro. O conto de fadas é um pretexto para o diálogo, diz o psiquiatra e poeta gaúcho Celso Gutfreind, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade Paris XIII, na França.

O pesquisador realizou terapia durante seis anos com crianças separadas de seus pais e com transtorno de conduta no grupo hospitalar Pitié-Salpetrière, na capital francesa. Seu método utilizava contos de fadas. A experiência está reproduzida no livro O Terapeuta e o Lobo. Entre muitas crianças, Gutfreind notou que elas não tinham capacidade de abstração. Confundiam os personagens com a realidade, não como mediadores dela. Tive que recorrer às canções de ninar e às cantigas, como se fossem bebês, porque não se distanciavam de seus problemas, afirma.

Com as crianças, o psiquiatra aprendeu duas virtudes que são benéficas nos contos de fadas e que, no limite, valem para todos nós, que adoramos ouvir (ou ler, ou assistir) uma história. Primeiro, a situação de plena troca. O menino ou a menina, durante meia hora, tem toda a atenção voltada para si. Alguém está olhando firmemente para seus olhos, dando seu tempo, importando-se com sua reação, alisando seus cabelos. A criança é o ator e a mãe ou o pai é sua platéia, diz Gutfreind.

A segunda se refere à estrutura aberta e simbólica do conteúdo. A criança se projeta na história, joga nela seus conflitos, seus desejos, suas brigas, sem que a história a ameace. É ela mas não é ela. As fadas, as bruxas e os ogros formam imagens indiretas do pai ou da mãe. São eles mas não são. O filtro simbólico sossega o coração da culpa pelos sentimentos adversos, completa. Para atiçar a alegria criativa e mantê-la acesa durante a vida inteira, o Gutfreind tem a receita na ponta da língua: Conte para seu filho histórias que dão prazer a você. Só podemos nos encantar quando estamos encantados.

Reeducação

Estamos cercados de linguagem e narrativas por todos os lados, da manhã à noite. Na TV, nos papos de bar, na crônica lida entre um compromisso e outro. Ao descansar, ainda estamos operando fantasias e sob o encanto da ficção. Tanto que a escritora Ana Miranda não desperdiça o mistério de nenhum dos seus sonhos. A autora de Boca do Inferno, romance sobre o poeta Gregório de Matos, anota seus devaneios em uma série de caderninhos, hábito preservado de menina. Tudo o que faço em minha vida tem conexão com o mundo onírico, diz. Ainda hoje se vendo como uma criança, de olhos graúdos e penteados pela luz, o excesso de infância está guardado dentro dela como um alçapão de histórias fantásticas. O silêncio formou-se em mim como um mundo ficcional. Eu não dizia nada, não respondia a perguntas, depois abria o caderno e escrevia o que eu não havia dito. E escrevia corrigindo o mundo, adequando-o a minhas necessidades internas, afirma.

As dores e as alegrias de nosso cotidiano e dos nossos sonhos não sobreviveriam sem uma narrativa, que une todas as manifestações culturais num único DNA. Como escreveu o filósofo alemão Walter Benjamin: A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.

A arte é a vida organizada, distribuída em capítulos e episódios. Dependemos de uma síntese, para que os milhões de gestos, vozes, palavras, sons, tiques, hábitos e cheiros não caiam no vazio. Onde estariam os milhões de frases ditas nas manhãs, nas tardes e noites, se não houvesse uma coerência invisível interligando-as, cruzando os fios em longa tapeçaria e formando um sentido para a memória?

Por isso, deixar-se encantar por histórias é essencial. E não só as fábulas, cuja origem é mesmo fornecer uma explicação fantasiosa da realidade. Parece até um paradoxo digno de um conto, mas não é: a ficção, por nos permitir sair um pouco da realidade, é como aqueles períodos de férias em que várias idéias e resoluções para nossa vida aparecem com clareza. Distantes das preocupações do cotidiano, mais leves para encarar a vida e com a cabeça mais descansada, as férias nos permitem esses vôos mais distantes. Assim pode ser entendida a ficção. Ela é como esse período longe de tudo, férias da mente e do espírito, em que afastados das durezas diárias e encantados com enredos que muitas vezes (ainda bem!) em nada se parecem com a vida real, somos obrigados a rever nossos valores, nos defrontamos com outras alternativas para a vida. A ficção as histórias, a imaginação nos reeduca para a vida.

Por isso é que alguns personagens da literatura (e, mais tarde, aqueles surgidos do cinema, das histórias em quadrinhos, das séries de TV) ajudaram a moldar a visão de mundo de gerações inteiras de leitores em todo o mundo. O cavaleiro delirante de Dom Quixote, de Cervantes: o sonho e aventura. O Hamlet da peça homônima de Shakespeare: a dúvida. A provinciana dona-de-casa adúltera de Madame Bovary, de Flaubert: a insatisfação. Sentimentos e modos de encarar a realidade que, em larga medida, serviram de modelos para que milhões de apreciadores desse livros pudessem interpretar a realidade e preecher seus dias com outras maneiras de tocar a vida.

Observação

A jornalista Eliane Brum, autora de A Vida que Ninguém Vê, uma coletânea de reportagens em que recupera a história de anônimos, encarna no jornalismo o espírito de Sherazade, a contadora de histórias das Mil e Uma Noites. Contamos sempre a mesma história. A nossa. E quem lê também lê sua própria história, mesmo que esteja lendo a do outro. Contamos e lemos histórias para ter certeza de que existimos. E de que não estamos sós na nossa dúvida sobre ser, afirma. Acho que contamos histórias na tentativa de preencher nosso horror. Nosso horror de vazio.

A repórter descortinou numa série de reportagens escritas como se fossem contos literários, repletas de recursos que estamos mais habituados a encontrar nos livros de ficção personagens invisíveis da rua, acostumados a ser olhados com esquisitice, como produtos da loucura urbana, ou com indiferença, apagados como estátuas que perderam a novidade e fazem parte da paisagem. Para ela, olhar o cotidiano sem preconceito, buscando enxergar as muitas histórias de cada um, é um dos elementos que a empurraram para a profissão de repórter.

É o que me fascina nas pessoas. O quanto elas são capazes de reinventar sua história apesar da brutalidade da vida. Em meus momentos de crise, declives de auto-estima nos muitos serpentários humanos desse mundo, eu costumo dizer a mim mesma: ninguém vai me dizer quem eu sou, não dou a ninguém o poder de dizer quem eu sou, eu escrevo minha história, diz Eliane.

Reinvenção

A ficção não é exclusividade dos artistas, e sim uma reserva de sanidade acessível democraticamente. Converse com o encanador, com o eletricista, com o carteiro, com o cobrador de ônibus, e eles contarão sua vida como se fosse um livro. Qualquer um acredita que sua vida rende uma obra. A ânsia pela história sinaliza o desejo diário de ser importante, de ser útil, de ter feito o certo.

A invenção representa uma catarse, desplugar-se por alguns instantes de um mundo repleto de exigências, cobranças e demandas profissionais e migrar para um faz-de-conta, feito de formas, sinais, tramas atemporais. Algo como uma dimensão paralela, em que o prazer grita mais alto. Uma saída para juntar os cacos, preservar a solidão e a unidade. O que explica o corretor de ações fazendo trabalhos de marcenaria nas horas vagas, a psicóloga pintando quadros em seu lazer, a professora costurando bonecas no intervalo das aulas, o engenheiro compondo versos durante as noites. A gula pelo conhecimento e sensibilidade não tem limites.

Um exemplo é o taxista de Porto Alegre Mauro Castro, 43 anos, casado e pai de uma filha adolescente. Um passageiro mudou sua trajetória. Ao conduzir com freqüência o diretor de um jornal popular da capital gaúcha, foi convidado a escrever crônicas sobre o que acontecia em seu veículo de prefixo 1296. Já são mais de 200 textos em quatro anos, que resultaram no livro Diário de um Taxista. Escrever é exercitar. A ficção me salvou de ser mais um entre 4 mil taxistas da cidade. Eu seria mais um, sou menos um, afirma Castro.

A ficção foi quase como um programa de reabilitação. Na época anterior às crônicas, Mauro se impacientava com o trânsito, com os sucessivos engarrafamentos e com o relógio apertado. Cumprindo o turno das 7h às 17h, enfrentava a sina de morar no carro praticamente o dia inteiro numa capital movimentada. Saía engavetado do assento do carro. Aprendi a deixar um pouco a direção e a entender a posição dos pedestres e dos demais motoristas. Não sofro mais de ansiedade. O engarrafamento pode ser lúdico. É um tempo maravilhoso para bolar enredos, diz.

Imaginação

Toda família forma uma biblioteca. Cada elemento dela é como se fosse um livro único. Tente conversar com os irmãos, com a mãe, com o pai, consigo mesmo, e verá versões de uma mesma cena mais do que verdades. O pai descreverá igual lembrança de um modo bem distinto do seu. Quem tem razão? Por mais que se discorde: ambos. Contar é alterar. Inviável a tarefa de repetir perpetuamente, tintim por tintim, uma fábula aos filhos antes de dormir. Haverá alguma mudança de plano, um detalhe adicional, uma adaptação que fará a maior diferença. E a criança espera justamente a variação, não o que já ouviu e sabe de cor.

A incompetência de ser igual e a tentativa de pessoalizar a existência é que enche as estantes de livros, filmes e CDs. Somos todos ficcionistas... Alguns, profi ssionais, afirma Luiz Alfredo Garcia-Roza, escritor, professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de Freud e o Inconsciente.

De acordo com ele, que se consagrou também ao gerar o detetive Espinosa em uma série de romances policiais, a curiosidade é a principal característica da ficção, que leva à suspeita e desemboca na descoberta. Entre as três atividades que realiza filosofia, psicanálise e literatura , todas têm em comum a prática da desconfiança em nome de um entendimento maior da realidade.

O detetive Espinosa (dos romances O Silêncio da Chuva e Uma Janela em Copacabana) não o tornou melhor. Eu diria que me deixou satisfeito, diz, brincando. As vantagens com a elaboração de histórias de investigação no Rio de Janeiro foram subjetivas. O grande ganho pessoal resultante da ficção literária decorre da potência que ela tem de aumentar indefinidamente os limites do universo de cada um de nós, autores e leitores. É um ganho semelhante ao da criança que fantasia. Ela está em obras, construindo seu mundo.

Era uma vez...
Para saber mais
Livros:
A Psicanálise dos Contos de Fada, Bruno Bettelheim, Paz e Terra
Fadas no Divã, Diana e Mario Corso, Artmed
O Terapeuta e o Lobo, Celso Gutfreind, Casa do Psicólogo

Fonte: Revista Vida Simples

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