terça-feira, 3 de novembro de 2009

Análise_Contato


Contato pessoal

O primeiro passo para o comprometimento verdadeiro é assumir uma promessa consigo.

Depois, estender a ponta do laço para o outro é conseqüência de uma atitude que nada tem de egoísta

Primeiro eu_Depois o outro_Em seguinda, as escolhas_Por fim, a ética
Eduardo sentiu na pele o que era ser preterido. Seu avô acabara de lhe dizer que ele não poderia aparecer na fotografia do patriarca com os primos, porque não nascera da linhagem Duarte de Azevedo da família – descendente direta de Manoel Antonio Duarte de Azevedo, ex-conselheiro do Império, ex-deputado provincial de São Paulo e tataravô materno do menino. Essa situação desagradável levou o garoto a fazer um pacto consigo: de marcar sua presença na vida. Naquele momento, Eduardo Ferreira-Santos estabelecia um laço de comprometimento com seu eu, que definiria o caminho de sua existência neste planeta. Honrando a promessa, o jovem membro da parte considerada menos prestigiada da família entrou na faculdade de medicina da Universidade de São Paulo, dando início a uma série de ações que ajudariam a mostrar ao avô que ele seria digno da consideração de todos. Infelizmente o patriarca 15 quinze dias depois e não pôde ver as conquistas seguintes do neto. Hoje cinqüentão, aquele estudante que por três vezes pensou em desistir da medicina tem livros publicados, formou família e criou um serviço de atendimento a vítimas de seqüestro no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo – algo providencial nos dias de hoje, já que a violência se incorporou definitivamente ao nosso cotidiano.

A história de Eduardo parece ser igual à de centenas de pessoas obstinadas em ser alguém na vida, mas ela tem um componente nem sempre presente na trajetória de todos: o comprometimento. Essa palavra deriva de “comprometer”, que define a ação de pessoas empenhadas, que se envolvem, tomam parte, prometem. Lendo isso você já deve estar buscando dentro de si com o que é comprometido. Provavelmente encontrará alguma coisa, já que de certa forma todos somos ou nos achamos comprometidos com algo. Isso mesmo: somos ou achamos que somos, porque comprometimento é cumprir, de fato, uma promessa. Geralmente as pessoas assumem compromissos, o que não significa necessariamente se comprometer.

Primeiro eu

O indivíduo se compromete verdadeiramente quando deseja algo para si. O que o leva a estabelecer um acordo com alguém ou alguma coisa é seu interesse em primeiro lugar. Nem dá para dizer que esse sujeito é egoísta, porque o comprometimento em benefício próprio é uma resposta ao maior questionamento da humanidade: quem sou, de onde venho, para onde vou? Em algum momento, todo ser humano se faz essa pergunta, e para atenuar a angústia por não encontrar esse entendimento, vai buscar um motivopara preencher sua existência e sentir satisfação.Até aí está tudo certo, o ritmo da vida é esse. O problema é que muita gente acha que é comprometida, mas não é tanto assim.
Alguém aí pode ter acabado de levantar o dedo para afirmar que é comprometido com o trabalho, que é pró-ativo, “pró isso”, “pró aquilo”. Pode até ser verdade, mas será que o que conduz a esse compromisso não são os bônus que a empresa dá no fim do ano ou a flexibilidade de sair no meio do expediente para amamentar o bebê em casa? Se for, também não tem problema, desde que haja honestidade em reconhecer que são esses benefícios que o levam a assumir a promessa de ter um comportamento megacorreto no escritório e se entregar de corpo e alma para cumpri-la.“É preciso haver um vínculo para alguém se comprometer”, afirma a terapeuta existencial Dulce Critelli, diretora do Existentia – Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana.Mas, de acordo com ela, atualmente há uma despersonalização tão grande das relações que as pessoas acabam se comprometendo mais consigo próprias.

Isso acontece porque o mundo carece de alteridade, termo usado na psicologia e na psiquiatria e que significa ter consciência da existência e das necessidades do outro. “Há um descomprometimento generalizado em todos os âmbitos. Fechando o foco para a política brasileira, você verá que o que está acontecendo é resultado da falta de alteridade”, afirma o analista junguiano Roberto Rosa Fernandes. Ele cita o conceito do puer aeternum (“puberdade eterna”, em latim), que retrata o comportamento dos indivíduos que parecem viver num eterno estado de adolescência. “É uma negação da realidade em todos os sentidos, como se ninguém quisesse assumir responsabilidades.” Como resultado, as pessoas partem para buscas individuais de auto-satisfação. Embalada pela energia de seus 23 anos, a administradora de empresas Julia Mello se comprometeu com o sonho de chegar aos 40 anos com um bom patrimônio para abrir um bistrô.“Trabalho focada nisso porque quero qualidade de vida quando chegar a essa idade”, diz.

Depois o outro

Como nem tudo na vida é a ferro e fogo, também tem quem procure a tal da auto-satisfação se dedicando a causas sociais que reflitam a sua indignação em algum campo, abrindo a conexão para o aspecto político do comprometimento. Sim, porque muitas vezes o descontentamento pessoal acaba repercutindo na vida do outro. “O nascimento de uma ONG é uma resposta de cidadãos que assumem o papel social de algo de que o Estado não está dando conta”, afirma Dulce Critelli. Daí, então, comprometer-se acaba sendo uma atitude que pode influenciar a vida de quem está ao nosso lado num nível mais amplo e não apenas no microcosmo do nosso universo pessoal. Celina Aparecida Simões, coordenadora no Núcleo de Defesa e Convivência da Mulher Casa Sofia, do Jardim Ângela (SP), dedica -se a ajudar os outros há quase 20 anos e há dois atende mulheres vítimas de violência sexual e doméstica. “Essa militância dá sentido à minha vida porque não posso negligenciar as necessidades alheias. Ser político no comprometimento é pensar no bem comum. Por isso afirmo que casei com a humanidade.”

O outro lado da moeda de quem não abraça o mundo pode ser se comprometer com quem está mais próximo da gente, como familiares e amigos. A infância permeada por dificuldades financeiras e um amor pra lá de verdadeiro entre pai, mãe e filhos levaram a engenheira Ana Franzini a se doar inteiramente em determinado período da vida para ajudar a família, que perdeu seu sustento: uma sorveteria. “Eu tinha 15 anos, prometi a mim mesma que iria dar uma boa condição de vida aos meus pais e vivi para isso. Vendia sanduíche para pagar meus estudos e entrei na faculdade. Com meu salário arrendei a sorveteria, que acabamos reconquistando”, diz ela, deixando claro que o comprometimento também implica fazer renúncias. Enquanto não resolveu a situação familiar, Ana não viveu para si. Ela só foi se olhar no espelho depois, e encontrou uma mulher que precisava nascer para a própria vida. Emagreceu, começou a namorar, comprou apartamento e, opa!, lá foi ela se engajar novamente com “o outro”.Virou síndica do prédio em que mora e promoveu mudanças, entre elas a redução do condomínio em 20%. “Tinha tanta coisa errada na administração e eu não me conformava em ver meu dinheiro mal cuidado. Em defesa do meu patrimônio, me candidatei a síndica”.

Em seguida, as escolhas

A atitude da Ana revela a ação e a escolha em benefício do autocomprometimento. “O ser humano traz em si o arquétipo do herói, que é quem faz acontecer e nos comanda em busca do que escolhemos”, afirma o psiquiatra Eduardo Ferreira-Santos. A partir dessa escolha, delineamos com quais dos nossos desejos vamos nos comprometer e como nos relacionar com eles e com o outro. Não dá para esquecer que vivemos em sociedade, interagimos com as pessoas e devemos praticar o aspecto humanista do comprometimento. “É uma relação de responsabilidade mútua, uma velha regra do liberalismo do século 17, que traduzimos por ‘minha liberdade vai até onde começa a do outro’”, afirma Rachel Gazolla, professora de filosofia da PUC-SP. Resumindo: as pessoas têm uma relação de responsabilidade perante as outras e por isso precisam ter o mínimo de conhecimento do seu papel na vida. “Se eu não me reconheço, como vou reconhecer o próximo?”, questiona Eduardo, citando o filósofo austríaco Martin Buber, autor de Eu e Tu. Segundo o livro, é preciso conhecer seus desejos e os do outro para se reconhecer numa relação, qualquer que seja ela.Ao ter consciência de suas aspirações, o indivíduo também se abre para o outro.

O palestrante e consultor de marketing Mario Persona partiu de uma proposta pessoal dele e da mulher para entender o próximo de uma maneira que vai muito além da frase feita. Depois de ter concebido dois filhos, o casal resolveu adotar um terceiro, mas queria uma criança com uma necessidade especial. “Existem pais que não podem ter filhos e adotam, e crianças que precisam de uma família. Eu resolvi suprir essa necessidade”, diz ele, que é pai de Pedro, um rapaz cego e portador de paralisia cerebral.Foi com absoluta consciência que Persona assumiu esse comprometimento para toda a vida. “Até os quarenta e poucos anos o cidadão corre atrás de dinheiro, depois ele busca um significado para sua existência, porque falta algo. E o Pedro preencheu essa ausência que eu sentia”, afirma.

No comprometimento, a pessoa assina um contrato de dedicação e zelo e vive por inteiro essa condição. Só que a sociedade parece estar indo no rumo contrário a isso.“O tempo está passando rápido e as situações e as relações estão ficando mais efêmeras”, afirma a psicóloga social e professora de sociólogia Maria Palmira da Silva. O mundo vem se desenhando como um lugar cada vez mais difícil e complicado de se viver e o que vale é a regra do cada um por si. No fim das contas, a impressão é a de que as pessoas se enfurnam cada vez mais em seu universo e nem o que aborrece é pretexto para elas se comprometerem com algo, já que o comprometimento também nasce de uma insatisfação que leva ao desejo de mudança.“A dor incomoda, mas as pessoas não têm muita capacidade de lidar com ela. Só que a dor tem um sentido alegre, quando ela é vista como um presente que nos alerta para viver de outra maneira”, diz o filósofo Luis Fungati, diretor da Escola Nômade de Filosofia.

Por fim, a ética

O medo da perda da mulher amada mudou a vida do músico Fábio Cirello. Paquerador de carteirinha, ele só tomou jeito, como se diz por aí, quando sua namorada resolveu terminar porque queria casar – e ele não era o que se chama de moço casadoiro. “Percebi que se eu continuasse vivendo na minha cartilha eu iria perder essa mulher, e investi em nosso relacionamento”, diz. Isso foi há 17 anos, e hoje ele contabiliza os benefícios da mudança de padrão. “Com a Yolanda aprendi a valorizar minha família, para quem eu pouco ligava, e entendi a importância real das relações interpessoais.” O despertar de Fábio abre outra janela: a da ética da promessa assumida, já que ele se propôs a ser fiel e cumpriu o contrato. O jurista e professor de direito na USP Fábio Konder Comparato, autor do livro Ética, afirma na obra: “Os princípios éticos são normas que nos obrigam a agir em função do valor do bem visado pela nossa ação, ou do objetivo final que dá sentido à vida humana”. No romance de Fábio, o objetivo é honrar o amor.

Manter o compromisso com a ética também ensina a ver as coisas com mais profundidade e traz engrandecimento pessoal.Antes de se casarem, em 1990,Marcos Trench e Raimunda Corrente cultivaram uma relação sólida, baseada na amizade. Eles nem namoravam. Eram amigos de verdade, daqueles que quase já não se fabricam mais.“O Marquinhos falava que iríamos casar e eu dizia para ele deixar de brincadeira.Mas um dia ele falou sério e aí sentamos para conversar”, afirma ela. Nessa conversa conseguiram estabelecer o contrato: ser amigos acima de tudo, basear a relação na verdade, na harmonia e no cuidado permanente com as palavras. Nesse polir constante do relacionamento, o casal aprendeu a ver sempre o melhor do outro e a lembrar que isso despertou o encantamento entre ambos. “Numa crise, você tem que resgatar a imagem que teve da pessoa quando a viu pela primeira vez, porque ali ela está em seu estado mais puro e é ela quem você deve evocar nos momentos de aperto para não desistir”, diz Marcos.

O comprometimento não tem segredo quando se torna parte de cada um. Você tem que “ser e estar” inteiro na proposta que assumiu. Os pais de Paola Tarallo Altieri ensinaram aos filhos que a união familiar e a obediência a valores como verdade e responsabilidade eram a base de tudo. Criados assim, os irmãos se comprometeram desde cedo com o negócio da família – e hoje cuidam da Speranza, uma das mais tradicionais pizzarias paulistanas. “Não trabalho aqui só porque é a empresa do meu pai, mas porque faço parte dessa história”, diz Paola. No rol das escolhas, tudo pode ser ajeitado para conciliar mais de uma coisa, como fez a terapeuta Ana Thomaz. Ela sempre desejou ter filhos,mas não queria deixar de trabalhar por causa deles. Mãe de uma menina de 5 meses, ela leva a filha para os teatros onde dá aulas de reeducação corporal. Ao unir os desejos pessoais e profissionais, Ana se funde a essas promessas, traduzindo o comprometimento, tão bem definido por Ferreira-Santos: “Comprometer-se é um estado de espírito”. E aí, vai encarar?

Para saber mais
Livros:
•Eu e Tu, Martin Buber, Centauro
•Ética, Fábio Konder Comparato, Companhia das Letras
Fonte: Revista Vida Simples

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