quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Análise_Saia de Cena


Saia de cena

Um afastamento temporário da rotina ajuda a abrir caminhos, resgatar planos e descobrir aonde queremos chegar

Parar por quê?_Até Deus parou_Coragem para mudar_Antes de parar
Faça uma conta rápida. Provavelmente, você deve ter entrado na escola aos 5 ou 6 anos de idade, um pouco mais, um pouco menos. Foi então que começou a corrida maluca dos números. Durante cerca de 11 anos, esteve imerso em muitas aulas, um aprendizado sem fim afinal, não havia escolha. Depois, veio o cursinho, o vestibular, a faculdade. Pelo menos mais cinco anos de aulas. Em seguida, o estágio e finalmente o emprego, a profissão. Em outros casos, filhos e família. Ou tudo ao mesmo tempo. E assim muitos anos se passaram, sua rotina se estabeleceu e consolidou a vida que você leva hoje. Quantas vezes já bateu aquela sensação de estar anos e anos correndo sem saber exatamente para onde está indo? Parece que não deu tempo de esvaziar a mente pelo contrário, ela só vem enchendo, enchendo, enchendo. Tem horas que parece quase transbordar.

É por isso que há momentos em que é preciso parar as máquinas. Afastar-se da rotina é um bom jeito de ver, de fato, o que está acontecendo em nossas vidas. Esse tempo pode ser aproveitado para tocar antigos projetos pessoais ou até descobrir novos rumos até porque muitas vezes eles nem estão tão claros assim. Se for o caso, você pode voltar e deixar tudo do jeitinho que estava o que importa é que seu olhar dali por diante terá mudado.

Trocando em miúdos, isso quer dizer parar mesmo de trabalhar, estudar, cuidar da casa, das crianças. Enfim, interromper temporariamente a atividade principal. Não se trata de férias, é uma parada mesmo.Coisa de mais de um mês podem ser meses ou anos, isso é você quem decide, dependendo do que pretende fazer com esse tempo. Existe até um nome para isso: período sabático. O termo, ainda pouco conhecido, vem da palavra hebraica shabat e marca o dia de descanso semanal dos judeus.Hoje, o conceito foi ampliado e significa dar uma parada em busca de qualidade de vida, mudança de hábitos e realização pessoal. Precisei andar 800 quilômetros para dar um salto de 30 centímetros: sair da cabeça e ir até o coração, resume o consultor financeiro Herbert Steinberg, ao lembrar o momento em que resolveu se afastar dos seus afazeres para fazer uma caminhada até Santiago de Compostela, na Espanha.A experiência rendeu frutos como o livro Sabático, um Tempo para Crescer.Herbert define o sabático como a interrupção da rotina para criar oportunidades de crescimento. É um período de estudo, de criação artística ou de qualquer outra coisa ditada pelo sonho individual. Para que continue após a sua realização, é preciso, em primeiro lugar, atender a uma profunda aspiração íntima.

Parar por quê?

Diferentemente das férias, o período sabático é motivado por uma necessidade de renovação, não de descanso puro e simples. Ele requer um sonho, o projeto de uma nova experimentação pode ser uma viagem de veleiro, uma escalada ao monte Kilimanjaro, uma temporada de trabalho voluntário, um curso ou mesmo um tempo longe do trabalho só para se dedicar aos filhos. O fundamental é sair da rotina para rever os rumos e conseguir uma mudança interior, uma virada na vida.

No livro A Essencial Arte de Parar, o psicoterapeuta americano David Kundtz diz que só fazendo essas paradas, mesmo que curtas, podemos ficar totalmente despertos e recordar quem somos. Kundtz diz que parar por um determinado tempo não importa quanto ajuda a entrar em contato com você mesmo: descobrir quem você é e o que quer da vida de verdade. Esse tempo individual ajuda a seguir na direção desejada na hora em que é preciso tomar uma decisão ou executar uma tarefa. Sem esse período de reflexão, acabamos sendo levados pelo turbilhão dos acontecimentos. Era impressionante a quantidade de pessoas que eu conhecia que levavam a vida como autômatos. Esse era um filme que eu não queria repetir. Senti necessidade de parar e refletir sobre minha própria condição no mundo, confirmando ou modificando trajetórias, diz Herbert Steinberg.

Para o consultor Paulo de Barros Souza, a hora de parar chegou quando percebeu que vivia um momento em que tempo era mais importante que dinheiro. Em abril deste ano, pediu uma licença do trabalho e passou três meses viajando.Aos 40 anos de vida e 20 de profissão, achei que merecia realizar projetos com os quais sonhava. Paulo compara a mente humana a um computador. Depois de um tempo, nosso cérebro também começa a apresentar problemas. Para que volte a funcionar bem, é preciso limpar o disco rígido e atualizar o software. Sabático é isso.

Na verdade, não é preciso de rótulos para tirar um período sabático. Sem sequer conhecer o significado da palavra, milhares de jovens do mundo todo passam meses viajando pelo mundo de mochila. Sem saber, estão em sabático. Na Inglaterra, é bastante conhecido o chamado Gap Year, um ano que muitos britânicos tiram entre o fim do ensino médio e o ingresso na universidade, normalmente para se dedicar a algum trabalho voluntário. Até os filhos do príncipe Charles,William e Harry, passaram um tempo trabalhando em países do Terceiro Mundo. Em Israel, freqüentemente rapazes e moças que terminam o serviço militar obrigatório passam de seis meses a um ano viajando antes de retomarem suas atividades. Esse período de aprendizado e reflexão ajuda a tirar dúvidas sobre qual carreira escolher isso mostra que não é preciso chegar aos 40 nem trabalhar dez anos em uma empresa para sentir necessidade de um tempo.

No filme italiano Pão e Tulipas, Rosalba, uma dona-de-casa, vive sem saber uma experiência parecida. Viajando pela Itália em uma excursão de ônibus com sua família, ela é esquecida pelo marido e os filhos em um restaurante de beira de estrada. Rosalba então aproveita a situação para conhecer Veneza, a cidade dos seus sonhos. Pede carona, trabalha como florista, faz novos amigos. Mais ainda: descobre entre estranhos um carinho e uma cumplicidade mais intensos do que tinha com seu marido e filhos.

Até Deus parou


Não pense você que o sabático é invencionice dos tempos modernos. De acordo com a Bíblia, foi ninguém menos que Deus quem começou isso. Ele teria criado o mundo em seis dias e, no sétimo, descansado. No Velho Testamento, está escrito:Semeareis os vossos campos seis anos a fio, e seis anos podareis as vossas vinhas, e recolhereis os seus frutos. O ano sétimo, porém, será o sábado na terra, consagrado à honra do descanso do Senhor. Não semeareis os vossos campos, nem podareis as vossas vinhas. Assim como a terra precisa de um tempo de descanso para continuar fértil, nós também necessitamos de um período longe da rotina para que novas idéias possam frutificar em nossa cabeça. Deve ser por isso que os escritos sagrados chegaram aos nossos hábitos atuais. A prática começou em 1880, quando o presidente da Universidade Harvard, Charles W. Eliot, quis contratar o famoso filólogo Charles Lanman. Para atraí-lo, ofereceu a Lanman o benefício de um ano de licença remunerada a cada seis anos trabalhados. Outras universidades seguiram o exemplo e, hoje, isso é muito comum em faculdades do mundo todo.

O sabático também sempre esteve muito presente na antroposofia, ciência espiritualista criada por Rudolf Steiner, no início do século passado, que se propõe a reunir os pensamentos científico, artístico e espiritual e, dessa forma, responder algumas das questões mais profundas do homem moderno sobre si mesmo e sobre suas relações com o Universo. Na pedagogia criada por Steiner, também conhecida como pedagogia Waldorf, o desenvolvimento dos seres humanos é explicado em ciclos de sete anos, chamados setênios. Cada setênio apresenta momentos diferentes de desenvolvimento da criança. O professor é um tutor que guia a mesma turma por sete anos. Depois disso, tem direito a um período para recarregar as baterias. Aproveitei meu sabático para ler e estudar bastante, diz a professora Wilma Lúcia Furtado Paschoa, do colégio paulistano WaldorfMicael. É importante para que você se desligue da turma anterior e tenha energia renovada para iniciar um outro ciclo. No mercado das empresas, o sabático chegou na década de 50, quando a IBM instituiu o programa Personal Leave of Absence. Ele permitia aos funcionários uma licença não-remunerada de até três meses. Hoje, 20% das maiores empresas dos Estados Unidos oferecem a possibilidade de períodos sabáticos, geralmente garantindo remuneração integral ou parcial.

No Brasil, ainda é pequeno o número de empresas que oferecem a possibilidade de um período sabático aos funcionários. Por isso, por aqui, a maioria das pessoas que resolve parar precisa se organizar por conta própria. Isso inclui guardar dinheiro por um tempo, planejar-se até porque, evidentemente, é inviável parar de trabalhar, resolver viajar ou seja lá o que for, sem um suporte financeiro. Pois bem, mas aqui chegamos a um ponto que costuma render discussões acaloradas: o dinheiro.A falta dele muitas vezes é usada como desculpa para não mudar.Afinal de contas,mexer em uma situação consolidada normalmente quer dizer trocar o conforto do conhecido por algo incerto. E isso pode significar aprender a viver com menos.

Andar de metrô, usar calça jeans e viver com dinheiro contado são algumas das experiências que mais marcaram o sabático de Walter Janssen Neto. Ele descobriu que era possível dar uma parada depois de trabalhar ininterruptamente durante 25 anos na Weg, grupo empresarial catarinense que fabrica motores elétricos industriais. Em 1997, ao saber que sua filha de 15 anos queria fazer um programa de intercâmbio no exterior, Walter teve um estalo. Por que não vou também?Após uma negociação com a diretoria da empresa, decidiu-se por um MBA na Filadélfia. Antes, passou três meses fazendo especialização na língua. Foi maravilhoso conviver com pessoas de todas as idades e de diversas partes do mundo, andar de metrô, me vestir informalmente. Descobri que era possível viver com menos e de maneira mais simples. A experiência mudou sua vida. Ao sair da rotina, ele perdeu a concha protetora,mas ganhou em crescimento pessoal. O sabático me permitiu ver que existiam oportunidades de aprendizado fora de Santa Catarina. Também ajudou a ver que o lado espiritual é bem mais importante que o material. Descobri que devemos ter coragem e determinação para seguir o que nosso coração e nossa intuição nos indicam.

Coragem para mudar


Fora o aspecto financeiro, a decisão de tirar um sabático ainda depende de muita ousadia. É preciso desprender-se e encarar todos os estranhamentos que a atitude pode causar. A administradora de empresas Cynthia Jobim é um bom exemplo disso. Para correr atrás de um antigo sonho, foi capaz de deixar marido e filhos pequenos em casa e viajar para o exterior. Ainda quando estava na época de faculdade, conheci um grupo de israelenses que tinham acabado de prestar serviço militar e estavam viajando por um ano. Foi a primeira vez que ouvi falar sobre a possibilidade de me afastar do dia-a-dia e vivenciar novas experiências, conta. Mas logo ela começou a trabalhar, casou, teve filhos e os outros sonhos ficaram de lado. Aos 40 anos, Cynthia tomou coragem e foi passar três meses estudando na Universidade de Michigan.Minha vida era uma correria.

Eu trabalhava, estudava, tinha um marido e duas crianças pequenas, não tinha tempo para nada, diz Cynthia. Longe de casa, finalmente teve tempo para um encontro consigo mesma. Sair do dia-a-dia faz você ver as coisas de outra perspectiva.Resgatei objetivos de vida que estavam esquecidos. No período fora, ela fez seus planos de mudança e logo ao chegar ao Brasil colocou-os em prática.Um mês depois da aterrissagem, deixou a empresa na qual estava havia 13 anos, foi fazer um mestrado e começou a dar aulas. Foi na viagem que resgatei a vocação para a pesquisa e o ensino, diz Cynthia.

Foi o olhar de fora que fez com que Cynthia mudasse as imagens que tinha em relação à própria vida. Esse mesmo olhar transformou o cotidiano de Paulo, Walter e todos os outros que tiveram um pedaço de sua história contada aqui. Pode ser que esta seja a chave: afastar para ver melhor. É como apreciar uma obra de arte com o rosto colado na tela não dá para ver nada, a pintura vira um borrão. Se dermos alguns passos para trás, tudo começa a ficar mais nítido. Até que a beleza da obra começa a aparecer no caso da vida, o máximo que pode acontecer é resolvermos mudar o quadro de lugar e pintar a parede de outra cor. O resultado pode ser surpreendente.

Antes de parar

TROQUE EXPERIÊNCIAS Para sair em sabático, é importante eleger um mentor, um conselheiro com quem possa trocar idéias sobre seu projeto e verificar se ele é de fato consistente. Deve ser alguém não apenas solidário com seus planos, mas também capaz de questioná-los. Isso o ajudará a fortalecer suas idéias.
PLANEJE-SE Converse com pessoas que já fizeram uma experiência semelhante e pesquise sobre o que pretende fazer. Talvez seja o caso de guardar dinheiro ou pedir a ajuda financeira temporária de algum familiar.

NEGOCIE COM A FAMÍLIA Parar o que está fazendo vai implicar uma certa negociação com quem vive com você. Pode haver resistência se você chegar, do nada, avisando que vai passar seis meses trabalhando como voluntário na África ou fazendo um curso de restauração em Londres. Para quebrar o choque, é preciso conversar bastante antes, prever soluções para problemas que sua falta pode causar. O mais importante é que todos percebam a importância que o projeto tem para você e os benefícios que trará para si e para a família.

DEFINA PRAZOS O sabático deve ter também um começo, um meio e um fim bem definidos para que o retorno à vida normal não seja traumático. Na volta, pode ser difícil se readaptar a compromissos e horários. O truque é aproveitar essas dificuldades a seu favor por exemplo, reduzir de vez a carga de trabalho em uma hora por dia e aproveitar esse tempo para fazer um esporte ou conviver com os filhos.

PARA SABER MAIS

FILME

Pães e Tulipas, dir. Silvio Soldini, 2000

LIVROS


Sabático, um Tempo para Crescer, Herbert Steinberg, Gente
A Essencial Arte de Parar, David Kundtz, Sextante
The Sabbatical Mentor A Practical Guide to Successful Sabbaticals, Kenneth Zahorski, Anker Publishing Company

Fonte: Revista Vida Simple

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